Há uma parte da opinião pública querendo ver sangue, e uma parte do
Judiciário querendo saciá-la. O Supremo está subvertendo a mais sagrada
regra do sistema judiciário brasileiro, a saber, a doutrina do direito
objetivo que exige prévia definição legal do crime, sem maiores
contorcionismos jurídicos.
J. Carlos de Assis - Carta Maior
Desde o século XVIII firmou-se como princípio do direito europeu
continental, ao qual se filia o direito brasileiro, a máxima, inscrita
em nossa Constituição, de que não há crime sem lei anterior que o
defina, nem pena sem prévia cominação legal. (Em latim: Nullum crimen, nulla poena sine previa lege.) O arauto desse princípio foi Cesare Beccaria, numa obra que constitui um dos pilares da era moderna, “Dos Delitos e das Penas”.
Ela prenunciava uma doutrina de proteção do cidadão comum contra
arbitrariedades do soberano, do Estado ou... de magistrados. A
propósito, foram justamente magistrados os poucos opositores de
Beccaria.
O julgamento do chamado mensalão está caminhando para uma situação na
qual grande parte dos réus está destinada a ser condenada a penas sem
prévia cominação legal referidas a crimes que não estão definidos como
tais em leis. É que os ministros do Supremo estão se arrogando a
prerrogativa de definir “por analogia”, como crimes, após o fato
consumado, ações como o gerenciamento de caixa dois eleitoral que estão
tradicionalmente presentes como irregularidades eleitorais em todas as
eleições brasileiras, sem uma única exceção, acredito eu. Por que só
agora a criminalização penal nesse caso específico?
Não falo de gestão fraudulenta de instituição financeira: isso está
tipificado em lei e já faz parte do direito objetivo brasileiro. Mas
dizer que houve a formação de “quadrilha” por parte dos dirigentes do PT
para comprar votos de parlamentares próprios ou de partidos aliados no
Congresso, chamar de peculato o recebimento de dinheiro para pagar
despesas eleitorais do próprio partido ou de outros, definir ainda como
peculato recebimento de pretensa vantagem sem provar que houve
contrapartida, tudo isso beira o surrealismo, para não dizer a máxima
arbitrariedade.
Vamos ser claros: há uma parte da opinião pública querendo ver sangue, e
uma parte do Judiciário querendo saciá-la. Ela ignora as consequências
dos precedentes dos julgamentos para o comportamento futuro do sistema
judiciário como um todo. Não sabe que, para atender seu apetite, o
Supremo, que deveria resguardar-se como guardião da serenidade, atua às
vezes, e não raro, política e demagogicamente. No caso, o Supremo está
subvertendo a mais sagrada regra do sistema judiciário brasileiro, a
saber, a doutrina do direito objetivo que exige prévia definição legal
do crime, sem maiores contorcionismos jurídicos.
Essa subversão terá consequências terríveis para o futuro jurídico
brasileiro. Caímos no sistema anglo-saxão, aquele do direito
consuetudinário, aquele que dá ao juiz uma imensa margem de
discricionariedade em suas decisões. Quais as consequências disso? Para
mim, que não sou jurista, devo usar uma linguagem comum: significa
simplesmente que nas causas correntes no Judiciário haverá mais margem
para os ricos culpados comprarem a sua absolvição e os pobres inocentes
arcarem com o peso da lei. Mas é estranho que nenhum grande advogado ou
jurista esteja chamando a atenção sobre isso: talvez tenham medo de se
indispor junto ao Supremo!
Entendo que o Congresso brasileiro deva invocar suas prerrogativas e
barrar essa pretensão do Supremo de, ao arrepio da cidadania, mudar as
bases doutrinárias de nosso sistema jurídico. O direito objetivo, mesmo
que circunstancialmente favoreça os ricos, é essencialmente uma proteção
dos pobres. Se tivermos de adotar o sistema anglo-saxão, que, como
dito, dá aos juízes ampla margem de arbitrariedade em suas decisões, que
seja por decisão da cidadania, através de seus representantes no
Congresso. Não pode ser um simples golpe do Supremo Tribunal Federal.
Deve ser por um consenso mínimo na sociedade.
A propósito, já é tempo de recordar ao Supremo quem é o poder máximo na
sociedade. Constitucionalmente, os três poderes são independentes e
autônomos. Politicamente, porém, o Poder Judiciário e o Poder Executivo
estão subordinados ao Legislativo, pelo fato de que este representa o
conjunto da cidadania, da cidadania e da soberania, acima da qual não
existe poder algum. Portanto, o ministro Marco Aurélio não pode
atropelar a letra da Constituição dizendo que o deputado João Paulo
Cunha está cassado por decisão do STF sem ter de passar pelo rito legal
que estabelece a própria Carta Magna.
É preciso que o Congresso, nesse contexto de exorbitação de poderes pelo
STF, tome iniciativas concretas para o restabelecimento da ordem
constitucional. Afinal, há vários ministros do Supremo sobre os quais
recaem pesadas suspeitas de falta de decoro. A revista Carta Capital,
por exemplo, afirmou em matéria de capa que o ministro Gilmar Mendes foi
beneficiário do esquema do valerioduto. Cabe investigar isso. Se
confirmado, é um delito político, sem necessidade de um artigo de lei
que o tipifique. E vale um processo de impeachment perante o Senado,
conforme previsto na Constituição.
Na condição de cidadão livre, e conforme a lição de Bobbio, eu tenho a
prerrogativa de fazer as leis através dos meus representantes políticos.
Repele-me a ideia de ficar sob o jugo de leis feitas por homens – sejam
reis, sejam presidentes, sejam juízes – que não têm que prestar conta a
seus constituintes. Veja o abominável sistema judiciário americano e
inglês: no curso da maior crise financeira de todos os tempos, devida
basicamente a fraudes e desvios praticados por instituições financeiras,
nem um único banqueiro ou dirigente financeiro foi preso ou condenado.
Eles literalmente compram o sistema judicial e se safam. Já os pobres
sofrem penas extremamente rigorosas, com poucas chances de regeneração.
Recorde-se ainda, nos Estados Unidos, a arbitrária decisão da maioria da
Suprema Corte de atropelar resultados eleitorais inequívocos que davam a
vitória a Gore para fazer vitorioso George Bush filho. O candidato
conservador, preferido da maioria da Corte, foi beneficiário de um
esquema corrupto, decisivo para o resultado nacional, montado seu
próprio irmão, ninguém menos que o governador da Flórida. Estaria o
cidadão comum brasileiro mais protegido com a adoção desse sistema?
Fala-se descaradamente, entre advogados e juristas, que o critério para o
julgamento do chamado mensalão é excepcional. Depois, voltaria tudo
como antes. Se for assim estaremos no limite extremo da arbitrariedade,
da demagogia e da violação dos direitos humanos.
Portanto, é necessário fazer um apelo sobretudo aos jovens que se
impressionaram com a retórica da procuradoria e do relator do chamado
mensalão: isso não passa de um circo para valorização pessoal de alguns
atores junto à opinião pública. No fundo, é uma vergonha que o
procurador e o relator estejam se prestando a esse papel de basear uma
retórica tão hiperbólica em provas factuais tão frágeis ou inexistentes.
Em que código, em que lei, em que regra o procedimento normal de
dirigentes partidários de buscar alianças e apoio pode ser definido como
ação de quadrilha? Não seria o trabalho normal deles? Ou quadrilha é
quando se juntam algumas pessoas para qualquer propósito, inclusive o de
condenar?
(*) Economista e professor da UEPB, presidente do Intersul, autor
junto com o matemático Francisco Antonio Doria do recém-lançado “O
Universo Neoliberal em Desencanto”, Ed. Civilização Brasileira. Esta
coluna sai às terças também no site Rumos do Brasil e no jornal carioca
Monitor Mercantil.
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